Formas maleáveis, narrativas instáveis
Por Adriane Hernandez*
João Salazar apresenta em sua primeira exposição individual uma série de trabalhos em que a plastilina, ou massa de modelar, é a grande protagonista. Isso porque é ela que vai atribuir uma atmosfera nova e inusitada às temáticas que já faziam parte dos desenhos de Salazar há alguns anos, mas eram executadas em materiais tradicionalmente ligados a essa linguagem, como grafite, lápis de cor, pastel oleoso, nanquim, aquarela e, nas quais, por este aspecto, havia maior predomínio do caráter narrativo sobre o material. Já a massa de modelar precipita a sua presença pelo forte apelo à tatilidade: a visão nos conduz a sensações táteis. Os relevos, os achatamentos, as marcas acidentais (contato) ou propositais (sulcos), os encaixes, as sobreposições e todo o "inventário" de figuras emblemáticas da paisagem ou internet, denunciam a maleabilidade que caracteriza o material, que é menos inerte do que os anteriormente utilizados pelo artista. É esse material que manifesta o apenas aparente paradoxo do refinamento de uma manualidade artesanal na sua motricidade fina, apontando para um auto-desafio do artista na elaboração do detalhe com a consciência do quanto essa elaboração influenciará no contexto mais amplo. A cor das massas e das formas não é menos importante e é interessante perceber o quanto as tonalidades são reelaboradas em função de um amadurecimento no uso da imaginação material e, assim, o trabalho vai se tornando cada vez mais pictórico, havendo menos preocupação com o desenho, no sentido da construção figurativa e, desse modo, a cor adquire maior complexidade. Os assuntos temas das minuciosas construções soam como pretexto para o prazer lúdico do trabalho com a matéria, que indica a sua constituição informe, uma proximidade com o disforme, com o amorfo, algo que ainda está por ganhar a forma fixa ou propenso ao derretimento. Essa imposição de expectativa se alia às paisagens apocalípticas, desordens, inundações, explosões ou, em trabalhos mais recentes, a um mundo tecnologizado, com emoticons cansados e deprimidos, mas ainda assim é uma espera irônica. Talvez, quando todo o resto nos faltar teremos a ambiguidade da arte, para nos trazer ainda a cor, ainda o humor, enquanto se vive e se espera.
*Adriane Hernandez é artista plástica, professora e pesquisadora do Instituto de Artes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, desde 2013 e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (UFRGS). Atuou como professora, categoria adjunto, na Universidade Federal de Pelotas, de 2008 a 2013 e como docente permanente do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da UFPel. Possui graduação em Artes Plásticas, habilitação em Pintura, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1994), mestrado em Artes Visuais pela mesma Universidade (1998) e doutorado em Artes Visuais, ênfase em Poéticas Visuais, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2007). Realizou estágio de doutorado na Universidade de Paris VIII sob orientação do teórico francês François Soulages. Como artista e pesquisadora, a sua área de interesse é ampla e inclui o campo da pintura, da fotografia, do objeto, da metodologia de pesquisa em poéticas visuais, mais especificamente, e da arte contemporânea, em geral.